sábado, 20 de fevereiro de 2021

KNUT HAMSUN | «fome»

 

Saiba mais.

 

Da critica de Pedro Mexia no semanário Expresso /Revista desta semana:

«(...) O protagonista é um escritor bloqueado e um jornalista ocasional, “um artista da fome”, para usar a fórmula kafkiana. Colabora na imprensa, tem ideias para artigos, para alegorias, para peças de teatro, ideias que concretiza ou que ficam em esboço, grandes ideias, garante, ainda que não saibamos se isso é verdade. Mas nem os artigos nem o teatro lhe chegam para as despesas, e vai vivendo em quartos alugados onde não consegue pagar a renda, em albergues para viajantes ou vagabundos, em casas onde depende da generosidade de estranhos, em bancos de jardim enquanto não aparece a polícia. Não tem dinheiro, o homem, a roupa está gasta, a desfazer-se, e a certa altura traz debaixo do braço, constrangido, um edredão, seu único aconchego. É um sem-abrigo em Kristiania — assim se chamava Oslo à época —, um pobre de Cristo que vagueia entre as lojas de penhores, sem ter o que pôr no prego, as montras das mercearias, onde cobiça produtos que não pode comprar, e o cemitério, onde encontra a paz dos mortos e o destino dos esfomeados.

Irritadiço, nervoso, sofrendo de vómitos, tonturas, alucinações, o protagonista não pode escapar à fome, porque a fome não é uma preocupação, é uma falta que o corpo faz sentir incessantemente. Em termos materiais, não tem quaisquer posses, apenas lápis, papéis, velas. Não possuindo nada, não fazendo nada, não convivendo praticamente com ninguém, leva uma vida descarnada, sem eira nem beira, dependente de um jornal que lhe aceite um artigo, de um amigo que lhe empreste dinheiro, de um acto arbitrário de gentileza. Mas a urgência física da fome acentua um entendimento grotesco do mundo; as pessoas parecem-lhe repugnantes, deformadas, ou então é ele que teme que o vejam assim, deformado e repugnante. Consciente da sua indigência, da sua indignidade, encara todos os incidentes como “casualidades absurdas”, “bagatelas ridículas”, e tem razão, tantos são os ínfimos equívocos a que assistimos, as conversas aleatórias, os delírios verbais. Para se proteger, mente aos conhecidos e aos desconhecidos, minimiza a sua desgraça, inventa ocupações, proventos, sucessos. Tenta arranjar emprego, mas não consegue. Às vezes aceitam-lhe um artigo, outras vezes não. Quer comer, quer ter um tecto, quer escrever, mas quer, mais que isso, que não o considerem um pedinte ou um louco. (...)»

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