O livro até pode ser visto como uma acerto de contas com a justiça, como quem «não quer a coisa», no seguimento do processo em que se viu envolvido quando acusado de ter molestado uma filha, processo de que saiu totalmente ilibado. Um processo kafkiano. Mas é com arte e genialidade, como que ao correr da pena, como parte de uma vida cheia, que ali é demonstrado. E para quem gosta da obra de Woody Allen talvez saia a gostar ainda mais e a entender melhor o que nos deu a ver. Em especial, para quem tem actividade no sector da cultura e das artes é uma pérola, mostra-nos o que, afinal, sempre esteve lá, põe o dedo na ferida, de maneira natural, como nos seus filmes. Passagens, «ao acaso»:
«(Bem, queria fazê-lo porque, alguns anos antes tinha visto Tio Vânia adaptado ao cinema por Andrei Konchalovsky, e achei que era uma obra de arte tão bela, que queria fazer algo assim. O problema é que nunca acertamos no intangível, pois embora tendo feito tudo o que Tchékhov poderia ter feito, deixei de fora um ingrediente essencial inquantificável - a genialidade. Tchékhov infundiu automaticamente o seu trabalho com genialidade algo que não se pode aprender nem controlar, e que, portanto, ainda que alguém como eu faça todas as coisas certas enquanto dramaturgo, o molho não espessa. Ainda assim, dado que retiro o maior prazer da realização de um filme, foi muito divertido fazer de conta que era um dramaturgo russo». (pg. 263/4).
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«Mas, pelo menos, os artistas, cheios de inseguranças, sabem que nada sabem. A maioria dos tipos do dinheiro não sabe nada, não têm instinto, mas imaginam-se muitas vezes como gente que sabe, que sabe mais do que o artista. Violentam e estropiam a obra em curso, debatendo-se por agradar por quaisquer meios necessários, e o resultado é, frequentemente, dez vezes pior do que se tivessem deixado o artista em paz. Ele que se afunde ou que nade sózinho. Só de muito em muito tempo, por mero acaso, que mais tarde será apelidado de sabedoria, faz o executivo uma melhor escolha do que o artista, conferindo ao projeto um sucesso lucrativo. Isto é raro, e o mais frequente é os projetos serem arruinados pela interferência dos «engravatados».
Estou a falar, aqui, sobre o cinema comercial. Se o cineasta é um artista, um Bergman, um Fellini, por exemplo, contributos de qualquer fonte, com exceção da alma do autor, estão completamente fora de questão; até os engravatados parecem senti-lo e recuam. Por imerecido que tenha sido, agi sempre como se estivesse na categoria dos cineastas artísticos e, embora fosse uma falsa comparação, as minhas exigências descomprometidas, mereceram-me um respeito que mais se adequavam aos verdadeiros mestres. Ainda assim, insisti, quem quisesse investir nos meus filmes podia enfiar o dinheiro num saco de papel pardo, ia-se embora e eu aparecia com um filme terminado, que, depois, o investidor tinha o direito de distribuir como muito bem entendesse». (pg.391/2).
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Olhando para o que acabou de se escrever, ocorreu-nos: no nosso País, os sistemas vigentes de financiamento às artes através do Ministério da Cultura como olharão para «relatos» destes ? Em particular, ouvir o que alguns membros dos júris diriam era capaz de «explicar» muito do que temos.
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