quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

NO TEATRO DA RAINHA |« ÀS DUAS HORAS DA MANHû, DE FALK RICHTER |«Esta é uma peça contra as virtudes badaladas do progresso sem fim em que andamos metidos narrativamente, pelo menos desde o início do consumo em massa, da sociedade do espectáculo e do consumo de massas. Opta por estar na contracorrente. Sobe o rio a caminho da nascente. É o incómodo total, nenhuma corrente a favor. É uma experiência radical na forma, mesmo sem um corte absoluto com a tradição, antes a cavalo nela»

 

 
 
Recebemos o Convite acima, e com gosto divulgamos o espetáculo em linha com o que temos feito. E apetece-nos lembrar a quem tem obrigação de «ir ao teatro», nomeadamente pela ligação à comunicação social, que há TEATRO fora de Lisboa e Porto ... É verdade, também cobrem  mais uns poucos. A crise nos «média» não explicará tudo ... Muitas vezes nos interrogamos: qual será o critério?
 
 

 UM ARQUIPÉLAGO DE MONÓLOGOS

«Porquê este título, Às duas horas da manhã, pergunto ao Richter. Como não reage, tento respostas. Porque é a essa hora em que, acordados fora de horas, as agruras se tentam pensamento. Ou talvez não. Morre-se de insónia? Talvez, porque o sono é mais propício ao pensamento, esse que habita os sonhos. As vozes que povoam esta peça sonham? Sonham um pesadelo constante e parecido, o que vem de uma frustração que funde profissão e vida.
As experiências que nos são relatadas – nos diversos registos há naturezas formais diferentes – são todas elas pesadas. Ninguém acede à sua própria individualidade – o contrário daquela do “sê tu mesmo” – porque o exercício da profissão que todos exercem ou exerceram, num quadro de compulsão laboral permanente e obrigatoriamente “exaltante”, leva ao apagamento do próprio desejo, numa colonização do ser pelos valores de mercado e pelas operacionalidades empresariais. O sujeito extingue-se na sua entrega à competição e ao lucro, à velocidade digital, ao seu aprisionamento pelo ecrã e pela ditadura das imposições informáticas da chamada inteligência artificial, sistema que colhe dados para, na soma, gerar respostas mecânicas, não sensíveis, impostas como verdades absolutas.
Esta é uma peça contra as virtudes badaladas do progresso sem fim em que andamos metidos narrativamente, pelo menos desde o início do consumo em massa, da sociedade do espectáculo e do consumo de massas. Opta por estar na contracorrente. Sobe o rio a caminho da nascente. É o incómodo total, nenhuma corrente a favor. É uma experiência radical na forma, mesmo sem um corte absoluto com a tradição, antes a cavalo nela. Um texto que aposta num devir cénico sem receita e que revisita formas monologadas reconhecíveis — a primeira cena — e outras, a terceira e a entrevista de emprego, logo a seguir, que são “teatros” que não fogem à convenção, antes as usando. Mas os discursos ganham outras formas e a presença do autor está por toda a parte.
Não há teses neste teatro, há indagações em devir, reflect/acção, um caminhar possível para a introspecção que se faz análise, um bruto dos dados a associar para ensaiar como as palavras se ordenam enquanto compreensão através do jogo e da fala, actos físicos íntegros, complementares e integrados. O autor também se despe, nada vela, nem as memórias familiares íntimas.
Estamos perante uma obra assumida como sendo de autor cénico — encenador, actor, músico, coreógrafo —, isto é, aquele que faz do palco e da tridimensionalidade a página dos seus actos de escrita numa perspectiva multidisciplinar e interdisciplinar — há canções isoladas e momentos disciplinares, cenas dançadas como superação dos limites da linguagem falada, limites esses expostos numa referência à sua exaustão, ao uso inevitável e às suas limitações para se dizer o que se sente.
O espectáculo que esta partitura dramática estimular não será, no entanto, pós-dramático, naquele sentido do enterro do teatro como peça de teatro. E se as dimensões narrativa e lírica e as interdisciplinaridades concretas, a estrutura e as tecnologias usadas reclamam uma liberdade da cena a sobrepor-se ao drama escrito, na verdade, a estrutura — cenas autónomas que falam umas com as outras como se fossem monólogos contrapostos (Sarrazac di-lo a propósito de Koltès) — a dimensão dramática das cenas, a intensidade dramática dos conflitos, estão lá claramente: tanto no conflito interior, como no desejo de encontro com um outro e que é falhado. É um teatro do mal-estar civilizacional que aqui encontramos, pois Richter põe radicalmente em causa o nosso modo de vida, este suicídio progressivo, ritmado em velocidade stressante pelo sucesso da carreira, em direcção a um nada interior que é, como sabemos, também uma catástrofe natural e planetária».
Fernando Mora Ramos. Saiba mais.


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