De lá:
«Em Abril, a Casa da Música, no Porto, apresentou um trio de concertos
chamado Música & Revolução. Longe vai a primeira edição desta
iniciativa, em 2007; longe no tempo, e ainda mais nas ideias. Era então
um festival celebrativo do 25 de Abril e do 1.º de Maio, que incluía a
arte de figuras centrais da música de intervenção (José Afonso como
homenageado, José Mário Branco como artista convidado naquele ano
) e
fazia questão de ser um reflexo do lema daquela instituição: a Casa de Todas as Músicas.
Por isso, integrava em força as músicas populares, nalguns casos com
concertos encomendados especialmente para o efeito. Foi assim que Pedro
Burmester o idealizou, num outro tempo. Vai distante a última vez que um
destes concertos coincidiu com o dia 25 de Abril, enquanto se vai
fugindo à evocação de revoluções democráticas, não se acolhe as músicas
populares e se mantém os cravos ausentes da decoração e dos espíritos.
Nem um para amostra.
Mas este é apenas um sinal. Onde o princípio democrático se perdeu por
completo é no dia-a-dia, cá dentro, onde há dois caminhos possíveis a
seguir: de um lado, o silêncio, a subserviência e o medo; do outro, a
livre expressão de opinião, a luta por condições justas de trabalho e as
represálias. Muitos de nós escolheram o segundo caminho. O da
liberdade, o da acção sindical, o do respeito pelos trabalhadores. O das
represálias. Ser sindicalizado nesta instituição cultural não é fácil e
tem dado direito a despedimento, por se estar em situação de falsos
recibos verdes ou contrato a termo, e a discriminação nas correcções
salariais, dadas a alguns e negadas a quem por elas lutou. Há
trabalhadores encostados sem trabalho, que passa a ser feito em regime
de outsourcing, incluindo contratos públicos de 120 mil euros alegando
falsamente a ausência de recursos próprios. Há a integração
forçada de trabalhadores em departamentos que não os seus. Há alienação
de pessoas, permanentemente excluídas das reuniões de equipa. Há a
retirada de perigosos sindicalizados dos seus gabinetes para os
distribuir por um open space, onde não é possível desempenharem as
funções para as quais são pagos e, sobretudo, com a intenção infantil de
cercear as conversas subversivas. Há esvaziamento de funções
de profissionais da cultura experientes e especializados. Resumindo numa
frase: os rostos visíveis só poderão ser os que se mostrem consonantes
com a administração, os outros são para eliminar.
A administração faz questão de nos deixar recados sinistros, entre o deixem-nos trabalhar e a valorização das vontades de uma maioria silenciosa imaginária, lembrando os ditos de grandes democratas
do passado. Além das perseguições, há uma sucessão de reestruturações
contraditórias. Depois de se decidir que o alto salário da
administradora-delegada justificava que acumulasse a direcção financeira
e a de recursos humanos, afinal nem uma coisa nem outra. Contrata-se
directores para estas áreas, naturalmente sem abertura pública de
concurso; e sabemos por onde andam os salários de topo, entre os 6 500 e
os 8 000, bem longe dos salários mínimos e quase mínimos que a Fundação
insiste em pagar a trabalhadores com muitos anos de carreira. Pelo
caminho, encomenda-se mais estudos externos de recursos humanos e
deita-se fora aqueles que, no mandato da anterior administração, já
custaram 93 mil euros (mais IVA) e ficaram escondidos na gaveta.
Abril já não existe na Casa da Música. No 1.º de Maio, tal como no
comércio de retalho, o Dia do Trabalhador não conta e os funcionários
foram convocados para estarem ao serviço num concerto com nome de
agência de seguros. A Casa de Todas as Músicas é também uma
miragem e o serviço público esvaiu-se. O investimento nas áreas pop,
rock, electrónica, world e fado caiu vertiginosamente ao longo dos anos:
30% dos gastos anuais em programação própria há pouco mais de uma
década (e 40% das receitas de bilheteira), reduzidos a 11% dos gastos
anuais nos últimos anos normais, antes da pandemia. Uma programação que
foi sendo esmagada pela preferência por alugueres de sala a promotores
comerciais, apesar de se contar com profissionais especializados no
quadro de pessoal. Estes fazem os possíveis e os impossíveis sem um
orçamento digno e, pasme-se, sem autorização para visitarem a maior
parte das feiras internacionais de música. Noutros tempos, desde a
abertura da Casa com Lou Reed, puderam programar coisas memoráveis como o
Clubbing, o Festival Mestiço, o Porto de Fado, o festival Casa
Portuguesa, concertos inteiramente encomendados a artistas portugueses
do jazz e da música popular, etc.
Nos três concertos Música & Revolução (às vezes são dois
), entre
assistentes de sala, técnicos extra, instrumentistas e coralistas,
trabalharam mais de 100 pessoas a recibo verde. Na Casa da Música impera
uma política de gestão virada para a externalização, que se pretende
aplicar cada vez mais (garantidamente nas áreas dos técnicos, dos
designers, dos produtores e dos editores, além das que já existem nos
assistentes de sala, nos músicos-formadores, na programação e outras). O
motivo para a sanha externalizante adivinha-se com facilidade: abrir
espaço aos despedimentos que se seguirão. Enquanto isso, o governo
embala-nos na ficção da agenda do trabalho digno e num Estatuto
dos Profissionais da Cultura que se apresenta com a pretensão de
reduzir a precariedade e promover os vínculos laborais estáveis. A
sério?».
Fernando Pires de Lima
Dirigente e delegado sindical na Casa da Música
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